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domingo, 13 de dezembro de 2015

Corrupção "organizada" = Lula; "desorganizada"= FHC

Pensata de FHC precisa ser mais bem detalhada; reflitamos, então, sobre organicidade e acaso, e sobre as características centrais dessa palavra-fetiche, “corrupção”

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)


O príncipe Fernando Henrique Cardoso admite que em seu governo a corrupção existia, mas não era “organizada“. À tentação de imaginar a Mancha Verde, a Gaviões da Fiel e a Jovem Fla como símbolos do que seria algo “organizado”, permito-me mais uma vez pesquisar a origem do termo. Ele vem de “orgânico”, “que possui órgãos cujo funcionamento determina a vida”. Desconhecíamos até então essa influência naturalista – biológica – na visão do sociólogo.

O Dicionário Houaiss descreve este sentido para a palavra organizado:
que constitui um conjunto definido, estruturado, fundamentado
E este para a palavra orgânico:
relativo ou pertencente à constituição ou estrutura (de qualquer conjunto, totalidade etc.); caracterizado pelo arranjo sistemático de suas partes; estrutural


Então a corrupção a partir de 1º de janeiro de 2003 seria “estrutural”. Antes disso, como no governo de FHC, não, ela não seria uma estrutura. (Uma obra do acaso, quem sabe?) Partamos do princípio de que o ex-presidente conheça noções elementares de história da corrupção, do quanto ela está instalada no núcleo dos Estados em diferentes eras e em diferentes espaços. Mas por ora nos atenhamos à palavra “estrutura”. Bastante familiar ao universo da sociologia.

Diz o Houaiss sobre estrutura:
organização, disposição e ordem dos elementos essenciais que compõem um corpo (concreto ou abstrato)

Desconfio, porém, que isto esteja ficando tautológico. Organizado é algo estruturado, estrutura é organização. Redundou. Assim não dá. Sim, o Houaiss nos lembra também que existe uma definição marxista para estrutura: a “constituição econômica da sociedade, marcada pelas relações de produção e de trabalho e que, em última instância, determina a superestrutura; infraestrutura”.
Pista falsa, porém. Quem disse que Fernando Henrique Cardoso ainda é marxista?

Examinemos, então, a palavra “corrupção”. Sigamos com o Houaiss (metodologia, este país precisa de um choque de metodologia):
1 deterioração, decomposição física, orgânica de algo; putrefação
2 modificação, adulteração das características originais de algo

Mas será possível? De novo? Corrupção seria algo “orgânico”? E ainda por cima algo que apodrece? (Nem vou falar do terceiro emprego do termo, “devassidão”.)

FHC, porém, só pode estar se referindo a esta sequência de definições:
4 ato ou efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa própria ou alheia, ger. com oferecimento de dinheiro; suborno
‹ usou a c. para aprovar seu projeto entre os membros do partido ›
5 emprego, por parte de grupo de pessoas de serviço público e/ou particular, de meios ilegais para, em benefício próprio, apropriar-se de informações privilegiadas, ger. acarretando crime de lesa-pátria

Usar corrupção “para aprovar seu projeto”, porém, não parece algo muito benéfico ao histórico do ex-presidente. Sem falar que ele é um homem que está muito além das pátrias; ele paira sobre elas. Aquela compra de votos para a reeleição, à qual se referia outro dia o insuspeito Claudio Lembo (que foi vice do governador José Serra), não seria exatamente… corrupção? E a reeleição, não seria algo “estrutural”?
Tudo muito confuso. Quando o príncipe dava aulas no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) tudo devia ficar mais claro, ele certamente promovia exaustivamente a exegese de cada termo e, didaticamente afável, não nos deixava dúvida nenhuma. Agora ele vem com essa de falar por metáforas – como se fora um poeta.

A corrupção. Então não tínhamos entendido nada? E nós que pensávamos – pelas aulas de história, pela leitura poliglota de jornais dos últimos 200 anos – que ela estava totalmente embebida nos aparelhos do Estado. Que ganhou outros nomes, como patrimonialismo (a confusão entre público e privado), esse patrimonialismo que o Ciro Gomes diz que é outro nome para “roubalheira”. Mas não.
Corrupção, explica-nos aristotelicamente Fernando Henrique Cardoso, ela é “organizada” ou não é. E a que não é organizada seria o quê? “Desorganizada”? Ah, sim, pontual. Que se reduz a um ponto ou a um detalhe do todo. Não, ainda não. Ele nos ensina que essa outra modalidade de corrupção – praticada em seu governo – é fruto de uma “conduta imprópria”. (Uma coisa feia – puxem as orelhas do corrupto pontual.)

Concluímos, assim, que durante a era FHC as eventuais corrupções muito esparsas deviam acontecer como acidentes, pontos fora da curva, externos, à margem da sabedoria evidente e intrínseca dos governantes tucanos, sempre tão cheios de vida. Eles eram tão sábios que sabiam que nada sabiam da corrupção que deveras houve – mas não era estrutural. Entenderam?

A palavra corrupção move montanhas. Hoje em dia é pronunciada de forma a ser associada a um partido específico, o PT. Que posava de vestal em relação a essa prática, ajudou a derrubar um presidente “corrupto”, criticava um prefeito paulistano “corrupto”. Mas aderiu. E agora precisa ser punido sozinho – informa-nos o senso comum sobre corrupção – como promotor único dessa aberração. Linchado, eliminado. Onde já se viu, praticar corrupção “organizada”?

(Por mais que levantamentos nos digam que prefeitos de outros partidos sejam estatisticamente mais corruptos. Mas talvez não sejam consideradas corrupções “estruturais”. “Orgânicas”. E sim pontuais, “impróprias” – ainda que em ampla escala, em sucessões de extremas coincidências.)
O PSDB, não. Alto! Neste caso não haveria corrupção estrutural. Caso Alstom? Deve ter sido coisa dos governos anteriores. Só permaneceu ali, corrompendo chefes de trens e de metrôs, porque os tucanos estavam ocupados demais fazendo seus doutorados. Mensalão “tucano”, não. Não existe. Somente o “mineiro”. “Corrupção”, mesmo, assim, com a boca cheia, só aquela que possa ser associada ao inimigo. Organizada!

Corrupção talvez seja somente aquela que os editoriais dos jornalões e revistas digam sistematicamente que é corrupção. Pois são eles – decerto – que definem o que é orgânico e estrutural em uma sociedade. (Ou seria o Judiciário?) Como o Carlos Lacerda não está mais aqui, cabe a alguns editorialistas anônimos e a colunistas esforçados (sempre a tentar adivinhar o que pensaria FHC) nos dizer qual corrupção seria organizada e qual seria imprópria.

(Organizada? Primeira página. Manchete. Conduta imprópria? Escondam na página 4.)
O problema dessa concepção é que a imprensa, conforme a tradição marxista, seria um aparelho ideológico de Estado, um instrumento dessa mesma burguesia que, afinal de contas, é a classe social que corrompe e…

Ops. Recaída. Já constatamos que FHC abandonou o marxismo. Teria se tornado ele um pós-neopositivista, um Auguste Comte com muito mais ilustração e lábia? Talvez a pensar numa corrupção orgânica, em ciclos. Morte e vida e morte da corrupção. Um governo apodrece – sempre um governo de algum partido incorrigível – e então (numa sucessão natural) viria outro governo iluminado, completamente diferente, rumo ao progresso, regenerador.

E não teríamos mais corrupção. Simples assim. Por algum tempo ela se tornaria até uma palavra esquecida. E talvez fosse melhor falar em “deslizes”. “Escorregões”. Não mais aquela coisa organizada, feia, de antigamente. (A pessoa estava ali, distraída, ocupando um cargo público e cuidando de um orçamento bilionário, quando, inadvertidamente, um perigoso lobbista apareceu no corredor escuro e…)

Segundo o Houaiss, um escorregão significa o ato de uma pessoa escorregar, ou deslizar, ou “proferir inconveniências ou impropriedades”, ou “exagerar um acontecimento durante narração excessivamente entusiástica”.

Aaaaaaah. Perfeito. Agora, sim. Por que não nos explicou isso antes?

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

As tempestades que rondam a América Latina

Vai terminando a primeira grande onda de governos populares. Retrocessos começaram, mas haverá resistência. Que aprender com os erros? Como preparar uma retomada?

Raúl Zibechi

 

Raúl Zibechi é escritor e pensador uruguaio, dedicado ao trabalho ativista com movimentos sociais na América Latina, com ênfase na região andina


Por Raúl Zibechi | Tradução: Gabriel Filippo Simões

O fim do ciclo progressista implica na dissolução de hegemonias e no início de um período de dominação, de maior repressão aos setores populares organizados. Até agora, temos comentado as causas do fim desse ciclo; agora é preciso começar a compreender as consequências – tremendas, pouco atraentes, demolidoras em muitos casos.
A recente eleição de Mauricio Macri na Argentina é uma guinada à direita que reacende a chama do conflito social. A resposta dos editores do conservador jornal La Nación, na forma de um editorial que defende abertamente o terrorismo de Estado é uma amostra do que está por vir, mas também das resistências que o projeto da direita tradicional terá de enfrentar.
Não estamos diante de um retorno aos anos 1990, marcados pelo neoliberalismo e privatizações, pois os de baixo estão numa situação diferente: mais organizados, com maior autoestima e mais entendimento do modelo que os oprime. Acima de tudo, com maior capacidade de confrontar os poderosos. Experiências coletivas não acontecem em vão – deixam marcas profundas, sabedoria e modos de fazer que neste novo estágio irão desempenhar um papel decisivo, na necessária resistência às novas direitas.
O período que se inicia em toda a América do Sul, quando o presidente Rafael Correa já anunciou que não pretende se reeleger [presidente do Equador], será de forte instabilidade econômica, social e política; de crescente interferência militar do Pentágono; de novas dificuldades para a integração regional, que já passa por sérios problemas; de deterioração nas condições de vida dos setores populares, cujos rendimentos começaram a se corroer nos últimos dois anos.
Nesta nova conjuntura, penso que algumas questões são centrais:
A primeira é que não haverá forças políticas capazes de gerar um mínimo de consenso em torno dos governos, tal como os governos progressistas conseguiram obter em sua primeira fase. Não haverá consenso em governos como o de Macri; mas convém lembrar que a hegemonia de Lula foi quebrada durante o segundo mandato de Dilma Rousseff. O mesmo ocorreu nos governos de Tabaré Vázquez, Rafael Correa e Nicolas Maduro, embora com causas diferentes.
Quando a hegemonia se esvai, a lógica de dominação se impõe, o que nos leva diretamente à exacerbação dos conflitos de classe, gênero, geração e étnico-raciais. A tríade dominação-conflitos-repressão vai afetar (já está afetando) as mulheres e os jovens dos setores populares, as principais vítimas da guinada sistêmica à direita.
A segunda questão a ser considerada é que o modelo político-econômico é mais importante e decisivo do que as pessoas que o conduzem e administram. Nas esquerdas, ainda temos uma cultura política muito centrada nos caudilhos e líderes – que sem dúvida são importantes, mas que não são capazes de ir além dos limites estruturais que o modelo impõe sobre eles. 
O extrativismo é o grande responsável pela crise que assola a região, pelo desgaste que os governos sofrem e, grosso modo, é o fator principal que explica a guinada à direita das sociedades.
Ao contrário do modelo industrial de substituição de importações, que gerou inclusão e promoveu o desenvolvimento social, o atual modelo extrativista gera polarização social e econômica e conflitos nas comunidades, além de destruir o meio ambiente. Portanto, é um modelo que produz violência, criminalização da pobreza e militarização das sociedades e dos territórios de resistência.

A incapacidade dos governos progressistas de abandonar o modelo extrativista e a vontade expressa das neodireitas de aprofundá-lo anuncia tempos dolorosos para os povos. 
A recente tragédia em Mariana (Minas Gerais) causada pela ruptura de duas barragens da mineradora Vale, provocando um gigantesco tsunami de lama que cobriu campos cultivados e vilarejos inteiros, é uma pequena amostra do que nos espera caso um limite não seja colocado ao modelo mineração-soja-especulação.
Em terceiro lugar, o fim do ciclo progressista supõe o retorno de movimentos antissistêmicos ao centro do cenário político, do qual eles haviam sido deslocados pela centralidade da disputa entre governos e oposição conservadora. Mas os movimentos que estão sendo ativados não são os mesmos, nem possuem os mesmos modos de organização e prática, dos que encabeçaram as disputas dos anos 1990.
Na Argentina, o movimento dos piqueteros não existe mais, embora tenha deixado profundos vestígios e lições, além de um setor organizado que trabalha nas villas das grandes cidades, com novos tipos de iniciativas tais como as casas populares de mulheres e secundaristas. 
Os movimentos camponeses, como o dos Sem Terra, transformaram-se devido à expansão geométrica da soja. Mas novos atores, mais complexos e diversos, emergem; deles participam, entre outros, os afetados pela mineração ou agrotóxicos, bem como ampla gama de profissionais de saúde, educação e mídia.
A impressão é de que estamos assistindo a novas articulações, acima de tudo nas grandes cidades, onde os protestos contra a desigualdade e por mais democracia extravasam as trincheiras de partidos e sindicatos e também dos movimentos da década neoliberal das privatizações.
Por fim, o ciclo progressista deve se fechar com uma análise clara dos erros cometidos pelos movimentos. Seria desmoralizante para os mesmos que no próximo ciclo de lutas se repetissem os mesmos erros que afetaram sua autonomia nos últimos anos. 
É provável que a maior dificuldade para o enfrentamento consista em saber como acomodar a dupla atividade dos movimentos: as lutas contra o modelo (a defesa de espaços próprios, mobilização e formação) e a criação do novo em cada espaço e tema possível (saúde, produção, habitação, terra e educação).
Enquanto ações nas ruas nos permitem impedir ataques vindos de cima, a criação do novo é caminhar na direção da autonomia. Estas são maneiras que aprendemos de continuar navegando em meio às tempestades.