Pensata de FHC precisa ser mais bem detalhada; reflitamos, então,
sobre organicidade e acaso, e sobre as características centrais dessa
palavra-fetiche, “corrupção”
Por
Alceu Luís Castilho (
@alceucastilho)
O príncipe Fernando Henrique Cardoso admite que em seu governo a corrupção existia, mas não era “
organizada“.
À tentação de imaginar a Mancha Verde, a Gaviões da Fiel e a Jovem Fla
como símbolos do que seria algo “organizado”, permito-me mais uma vez
pesquisar a origem do termo. Ele vem de “orgânico”, “que possui órgãos
cujo funcionamento determina a vida”. Desconhecíamos até então essa
influência naturalista – biológica – na visão do sociólogo.
O Dicionário Houaiss descreve este sentido para a palavra organizado:
que constitui um conjunto definido, estruturado, fundamentado
E este para a palavra orgânico:
relativo ou pertencente à constituição ou estrutura (de qualquer
conjunto, totalidade etc.); caracterizado pelo arranjo sistemático de
suas partes; estrutural
Então a corrupção a partir de 1º de janeiro de 2003 seria
“estrutural”. Antes disso, como no governo de FHC, não, ela não seria
uma estrutura. (Uma obra do acaso, quem sabe?) Partamos do princípio de
que o ex-presidente conheça noções elementares de história da corrupção,
do quanto ela está instalada no núcleo dos Estados em diferentes eras e
em diferentes espaços. Mas por ora nos atenhamos à palavra “estrutura”.
Bastante familiar ao universo da sociologia.
Diz o Houaiss sobre estrutura:
organização, disposição e ordem dos elementos essenciais que compõem um corpo (concreto ou abstrato)
Desconfio, porém, que isto esteja ficando tautológico. Organizado é
algo estruturado, estrutura é organização. Redundou. Assim não dá. Sim, o
Houaiss nos lembra também que existe uma definição marxista para
estrutura: a “constituição econômica da sociedade, marcada pelas
relações de produção e de trabalho e que, em última instância, determina
a superestrutura; infraestrutura”.
Pista falsa, porém. Quem disse que Fernando Henrique Cardoso ainda é marxista?
Examinemos, então, a palavra “corrupção”. Sigamos com o Houaiss (metodologia, este país precisa de um choque de metodologia):
1 deterioração, decomposição física, orgânica de algo; putrefação
2 modificação, adulteração das características originais de algo
Mas será possível? De novo? Corrupção seria algo “orgânico”? E ainda
por cima algo que apodrece? (Nem vou falar do terceiro emprego do termo,
“devassidão”.)
FHC, porém, só pode estar se referindo a esta sequência de definições:
4 ato ou efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa própria ou alheia, ger. com oferecimento de dinheiro; suborno
‹ usou a c. para aprovar seu projeto entre os membros do partido ›
5 emprego, por parte de grupo de pessoas de
serviço público e/ou particular, de meios ilegais para, em benefício
próprio, apropriar-se de informações privilegiadas, ger. acarretando crime de lesa-pátria
Usar corrupção “para aprovar seu projeto”, porém, não parece algo
muito benéfico ao histórico do ex-presidente. Sem falar que ele é um
homem que está muito além das pátrias; ele paira sobre elas. Aquela
compra de votos para a reeleição, à qual se referia outro dia o
insuspeito Claudio Lembo (que foi vice do governador José Serra), não
seria exatamente… corrupção? E a reeleição, não seria algo “estrutural”?
Tudo muito confuso. Quando o príncipe dava aulas no Departamento de
Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) tudo devia ficar mais
claro, ele certamente promovia exaustivamente a exegese de cada termo e,
didaticamente afável, não nos deixava dúvida nenhuma. Agora ele vem com
essa de falar por metáforas – como se fora um poeta.
A corrupção. Então não tínhamos entendido nada? E nós que pensávamos –
pelas aulas de história, pela leitura poliglota de jornais dos últimos
200 anos – que ela estava totalmente embebida nos aparelhos do Estado.
Que ganhou outros nomes, como patrimonialismo (a confusão entre público e
privado), esse patrimonialismo que o Ciro Gomes diz que é outro nome
para “roubalheira”. Mas não.
Corrupção, explica-nos aristotelicamente Fernando Henrique Cardoso,
ela é “organizada” ou não é. E a que não é organizada seria o quê?
“Desorganizada”? Ah, sim, pontual. Que se reduz a um ponto ou a um
detalhe do todo. Não, ainda não. Ele nos ensina que essa outra
modalidade de corrupção – praticada em seu governo – é fruto de uma
“conduta imprópria”. (Uma coisa feia – puxem as orelhas do corrupto
pontual.)
Concluímos, assim, que durante a era FHC as eventuais corrupções
muito esparsas deviam acontecer como acidentes, pontos fora da curva,
externos, à margem da sabedoria evidente e intrínseca dos governantes
tucanos, sempre tão cheios de vida. Eles eram tão sábios que sabiam que
nada sabiam da corrupção que deveras houve – mas não era estrutural.
Entenderam?
A palavra corrupção move montanhas. Hoje em dia é pronunciada de
forma a ser associada a um partido específico, o PT. Que posava de
vestal em relação a essa prática, ajudou a derrubar um presidente
“corrupto”, criticava um prefeito paulistano “corrupto”. Mas aderiu. E
agora precisa ser punido sozinho – informa-nos o senso comum sobre
corrupção – como promotor único dessa aberração. Linchado, eliminado.
Onde já se viu, praticar corrupção “organizada”?
(Por mais que levantamentos nos digam que prefeitos de
outros partidos
sejam estatisticamente mais corruptos. Mas talvez não sejam
consideradas corrupções “estruturais”. “Orgânicas”. E sim pontuais,
“impróprias” – ainda que em ampla escala, em sucessões de extremas
coincidências.)
O PSDB, não. Alto! Neste caso não haveria corrupção estrutural. Caso
Alstom? Deve ter sido coisa dos governos anteriores. Só permaneceu ali,
corrompendo chefes de trens e de metrôs, porque os tucanos estavam
ocupados demais fazendo seus doutorados. Mensalão “tucano”, não. Não
existe. Somente o “mineiro”. “Corrupção”, mesmo, assim, com a boca
cheia, só aquela que possa ser associada ao inimigo. Organizada!
Corrupção talvez seja somente aquela que os editoriais dos jornalões e
revistas digam sistematicamente que é corrupção. Pois são eles –
decerto – que definem o que é orgânico e estrutural em uma sociedade.
(Ou seria o Judiciário?) Como o Carlos Lacerda não está mais aqui, cabe a
alguns editorialistas anônimos e a colunistas esforçados (sempre a
tentar adivinhar o que pensaria FHC) nos dizer qual corrupção seria
organizada e qual seria imprópria.
(Organizada? Primeira página. Manchete. Conduta imprópria? Escondam na página 4.)
O problema dessa concepção é que a imprensa, conforme a tradição
marxista, seria um aparelho ideológico de Estado, um instrumento dessa
mesma burguesia que, afinal de contas, é a classe social que corrompe e…
Ops. Recaída. Já constatamos que FHC abandonou o marxismo. Teria se
tornado ele um pós-neopositivista, um Auguste Comte com muito mais
ilustração e lábia? Talvez a pensar numa corrupção orgânica, em ciclos.
Morte e vida e morte da corrupção. Um governo apodrece – sempre um
governo de algum partido incorrigível – e então (numa sucessão natural)
viria outro governo iluminado, completamente diferente, rumo ao
progresso, regenerador.
E não teríamos mais corrupção. Simples assim. Por algum tempo ela se
tornaria até uma palavra esquecida. E talvez fosse melhor falar em
“deslizes”. “Escorregões”. Não mais aquela coisa organizada, feia, de
antigamente. (A pessoa estava ali, distraída, ocupando um cargo público e
cuidando de um orçamento bilionário, quando, inadvertidamente, um
perigoso lobbista apareceu no corredor escuro e…)
Segundo o Houaiss, um escorregão significa o ato de uma pessoa
escorregar, ou deslizar, ou “proferir inconveniências ou
impropriedades”, ou “exagerar um acontecimento durante narração
excessivamente entusiástica”.
Aaaaaaah. Perfeito. Agora, sim. Por que não nos explicou isso antes?